
Das oito mercearias que vendiam bacalhau na Rua do Arsenal, no centro de Lisboa, restam duas. Há largas décadas de portas abertas, a Pérola do Arsenal e o Rei do Bacalhau sentem a descida nas vendas. O comércio de rua tradicional desperta a curiosidade dos turistas que ali passam e espreitam, mas que pouco compram o fiel amigo.
Reportagem de Nuno Cardoso | Fotografia de Paulo Spranger
O tempo vai passando mas a memória não dá sinais de cansaço, mesmo 22 anos depois. “Nos primeiros três meses, a única coisa que me mandavam fazer era carregar sacas pesadas com farinha, trigo, feijão, de um lado para o outro”, recorda Rui Bértolo, entre risos. Afinal, era o mais jovem da equipa, na altura. Hoje, é o funcionário mais antigo na Pérola do Arsenal, a mercearia que há 90 anos vende bacalhau na lisboeta Rua do Arsenal, entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço, e uma das duas resistentes que ainda o fazem nesta artéria, onde já se vendeu o fiel amigo em oito moradas, a maioria já encerradas pela pressão das grandes superfícies.
“As outras foram fechando com os anos. É uma pena. Durante um ou dois anos, também sentimos dificuldade. A própria chegada do metro veio retirar muitas pessoas desta rua”, explica Bértolo, acrescentando que o alargamento do passeio nesta artéria e a requalificação da Ribeira das Naus “voltou a trazer mais público” para a zona e o negócio. Nasceu em Moçambique e viveu na Covilhã, mas sente-se “mais lisboeta”, ou não se tivesse mudado para a capital ainda jovem. Há duas décadas que é ele quem corta o bacalhau nas mesas de mármore que ali estão desde o início. “Foram precisos dez homens para carregá-las”, afirma o funcionário de 58 anos.

A mercearia mantém o chão e as arcadas originais, mas foi diversificando a oferta com o passar das décadas e triplicando em metros quadrados, albergando o espaço de uma antiga papelaria. O bacalhau e o vinho têm lugar fixo nas prateleiras desde o arranque, aos quais se foram juntando conservas, leguminosas e especiarias a granel, muitas destas as responsáveis pela fidelização de um público cabo-verdiano, como o xerém, a fava seca e o fubá. Ainda que não seja o mais vendido, o bacalhau mantém-se como o protagonista, em espaço ocupado e variedade. A larga maioria chega da Islândia, mas também da Noruega. Vende-se inteiro ou à peça – lombo, rabo, miga, aba, cachaço, sames ou bochechas.
O mesmo se aplica, poucos metros à frente, no Rei do Bacalhau, onde se multiplicam as unidades do fiel amigo crescido, graúdo, especial e especial mais, conforme o peso. É desta última variedade que se fará o Natal de Fernando Dias, natural de Meda, perto da Guarda, e gerente desta mercearia aberta há 61 anos. “Na consoada, comemo-lo sempre cozido, com couves. Mas também teremos polvo frito”, explica o responsável.

Mais de metade da sua vida foi passada ali. Dos seus 56 anos, 35 foram dedicados a esta casa, que conta com uma equipa “pequena mas unida”, descreve a filha, Ana, que ali também trabalha. Para além do bacalhau islandês e norueguês, incluindo uma nova variedade com cura em flor de sal, há bolachas artesanais, compotas, leguminosas a granel, dezenas de referências vínicas, enchidos e queijos DOP como o de serra da Estrela e o de Azeitão.
Assumiu as rédeas da loja com a morte do sogro, o fundador, e ainda hoje trabalha com boa disposição, ele e o seu bigode farto. Nos últimos tempos, colocou calçada portuguesa na mercearia e tornou-a mais luminosa, “para ir ao encontro das exigências do mercado”, conta, enquanto embala dois lombos de bacalhau em papel pardo e cordel, “para que consiga respirar e perder humidade”, frisa Dias.

O responsável olha com apreensão para o estado do comércio de rua nos dias que correm, ainda que confiante pela sua oferta diferenciadora. “Não podemos competir com o conforto das grandes superfícies comerciais, onde se estaciona à porta. Na Baixa, os parques são caros e anda-se às voltas de carro. Pode tornar-se numa dor de cabeça. Mas a nossa mais-valia é a qualidade do bacalhau, essa é certa”, confessa o homem que já recebeu na loja a ministra da Pesca norueguesa, e que já fez Manuel Luís Goucha desfazer-se em risos com uma piada que disse num direto para a TVI, “sobre uma punheta de bacalhau”.
Poucos turistas compram bacalhau
Faz companhia paralela ao Tejo e é ponto de passagem em passeios a pé, de autocarro e de elétrico. A Rua do Arsenal nasceu do novo traçado da capital, quando surgiu a necessidade de reerguer a cidade após o terramoto de 1755, e já foi palco para momentos históricos, como os confrontos entre as forças da Escola Prática de Cavalaria e as do Regimento de Cavalaria nº 7, fiéis ao regime de Salazar, durante a manhã de 25 de abril de 1974.

As oito mercearias que ali vendiam bacalhau foram tornando, depois, o fiel amigo como um dos principais símbolos da artéria, até pelo característico cheiro que a define. Hoje, a explosão turística em Lisboa fez que as duas resistentes de comércio local de bacalhau tivessem como vizinhos uma unidade hoteleira de cinco estrelas, um hostel e várias lojas de souvenirs e conservas.
Os dois responsáveis pelas mercearias são unânimes: muito poucos turistas compram este peixe gadídeo. “São os portugueses quem compra bacalhau, e alguns espanhóis. De resto, ficam encantados, tiram fotografias, mas levam mais vinho e conservas”, explica Rui Bértolo, da Pérola do Arsenal. Neste espaço, só em dezembro, vendem-se uma média de cem caixas de bacalhau, cada uma com 25 quilos, face às cinco caixas por mês no resto do ano.

Fernando Dias adianta que, mais do que comprá-lo, os turistas preferem comê-lo na restauração. Felizmente, “há sempre portugueses a comprar bacalhau durante o ano todo”. E ainda mais em dezembro, quando consegue vender mais 50% do que nos restantes meses. Manuela Franco é um dos exemplos de quem passa por ali durante as quatro estações do ano. “Prefiro vir às lojas de rua, mais calmas, onde o atendimento é melhor e já vamos conhecendo quem cá trabalha. É melhor do que ir às grandes superfícies”, conta, à saída do Rei do Bacalhau. O letreiro, decorado com a forma de um bacalhau, dá nas vistas de quem passa na rua.
Os turistas espanhóis Lorenzo e Pablo, pai e filho, não são exceção. O mais novo torce o nariz e confessa que “o cheiro é estranho”, quando se passa pela loja, mas o pai reforça que “é saudável que estas lojas antigas continuem abertas””. É apreciador de bacalhau, mas não vai entrar para comprar, porque “não é algo fácil de levar na mala de viagem”, conta.
“A versatilidade é a mais-valia do bacalhau”
Há alguns anos, quando Fernando Dias se viu obrigado a fechar a mercearia, por dois dias, sentiu as saudades da clientela fixa de forma clara. “Tinha gente à porta quando abri a loja e gente à porta quando a fechei, das oito da manhã às oito da noite”, ri-se. O negócio está hoje estável, mas longe vão os tempos em que se faziam filas na rua. “No início, era sempre hora de ponta. Eram tantas pessoas a passar nesta rua que era raro o dia em que não havia atropelamentos”, recorda o gerente do Rei do Bacalhau, de portas abertas todos os dias exceto ao domingo, “o dia para ir à missa mostrar os sapatos novos”, brinca.
O mesmo explica que “a versatilidade é a mais-valia” do bacalhau. “Pode ser feito todos os dias da semana, de forma diferente. É um produto que não cansa”, revela o dono, que não esconde a sua preferência pela versão cozida com grão. Em casa, o truque é fácil, atira, prontamente: “Para demolhar, bastam dez partes de água para uma de bacalhau.”

Algumas portas para a esquerda, Rui Bértolo não duvida. “O bacalhau continua a ser muito importante para os portugueses. Pelos meus clientes, diria que o comem, pelo menos, uma vez por semana”, revela o funcionário da Pérola do Arsenal, onde trata muitos dos clientes pelo nome. Os mesmos que estão escritos em blocos de notas afixados com encomendas, datas e preços, colados junto à zona onde se corta o bacalhau. “Temos cá pais, filhos e netos. Alguns, conheci-os nas barrigas das mães”, relembra Rui, rodeado do seu calendário de parede de 2019, ilustrado, claro está, pelo fiel amigo. Tão fiel quanto a comunicação por gestos que costuma facilitar a vida de Rui quando entra alguém a falar inglês. “Eu cá me desenrasco”, remata.
Bacalhoeiros: uma rua com nova vida
É impossível mencionar a ligação entre Lisboa e a venda do bacalhau sem se mencionar a Rua dos Bacalhoeiros, que assim ficou batizada com a transferência dos comerciantes de bacalhau para aqui, após o terramoto de 1755. Antes disso, o arruamento a dois passos de Alfama já teve outros nomes, como Rua Direita da Ribeira, Rua dos Confeiteiros e Rua de Cima da Misericórdia. Hoje, há nova vida no local onde muitos compravam o seu bacalhau. A artéria tem agora acesso exclusivo pedonal, um renovado Largo José Saramago e sabores ecléticos, como as propostas peruanas do restaurante Qosqo ou a cozinha de autor, sazonal e saudável, do Sála, do chef João Sá.